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Home >> Notícias >> Pista dos Sonhos - Por Sérgio Xavier Filho (jornalista, comentarista do sportv)
06/06/2022 Fonte: https://ge.globo.com/eu-atleta/blogs/correria/post/2022/06/02/pista-dos-sonhos.ghtml?fbclid=IwAR3id9j1Zy01EqHB9YHGaFy5pNTjA9BmRlivvXZPwAHPieM_lWJR-C3_FiQ
Por Sérgio Xavier Filho
É jornalista, comentarista do sportv. Correu 13 maratonas e escreveu os livros “Operação Portuga” e “Boston, a Mais Longa das Maratonas”
É só asfalto e tinta, nada mais. Numa rua perdida na zona leste profunda de São Paulo, seis faixas brancas rasgam o asfalto por 200 metros. Entre as faixas, a tinta vermelha simula o que seriam raias de atletismo. E não é simulação, é de verdade. Aquilo é um estádio olímpico e grandes campeões aceleram forte por ali, ao menos na cabeça do ex-goleiro de futsal Fran Kauê.
O que poderia ser apenas o delírio de um ex-atleta e morador do Bairro de Itaquera virou um projeto, uma semente. A ONG Associação Esportiva e Cultural Kauê nasceu há 24 anos quando Fran foi levar o filho pequeno em uma corrida infantil e percebeu que uma menina do bairro estava hesitante em participar porque nunca havia pisado numa pista de atletismo. Convocou quatro amigos e resolveu criar a própria pista em uma rua quase deserta nas proximidades de onde é hoje a Neo Química Arena do Corinthians. A pista não é exatamente uma reta, já que a rua Nicolino Mastrocola faz uma leve curva. Nem plana, já que existe uma inclinação suave. Não importa. Nos finais de tarde de segunda, quarta e sexta, Fran se investe de autoridade de trânsito, coloca um cavalete em cada ponta da rua para impedir a passagem de veículos e o local se transforma em centro esportivo. O projeto decolou a partir dali. Fran começou a dar treino de corrida no "estádio olímpico" para a molecada, descolar tênis para os mais carentes, envolveu amigos, conhecidos e desconhecidos na empreitada.
A AEC Kauê estava em festa nesse primeiro de junho, Dia Mundial da Corrida. A raia da Nicolino Mastrocola segue firme e usada, a Kauê é que expandiu seus limites. Agora a ONG tem uma sede cheirando tinta fresca com esteiras, aparelhos de musculação em um sobrado na rua ao lado. E tem uma pista circular de 200 metros a poucos metros dali no Parque Linear do Córrego do Rio Verde. A pista, ao melhor estilo queniano de terra batida com pó de brita, foi financiada pela Asics, a principal patrocinadora da ONG.
Difícil não se emocionar com crianças pequenas se desafiando e se divertindo em corridas de revezamento em uma manhã fria e chuvosa. Não estão em um clube de elite paulistano empurradas pelas mães, mas numa periferia quase sempre desassistida pelo poder público. Ali é esporte, diversão, oportunidade, inclusão, tudo junto misturado. Difícil não ficar tocado com Fran relembrando (e se emocionando) com as dificuldades dos últimos 24 anos. Difícil não se emocionar com um outro Kauê, o Kauê Orvalho de Almeida, que começou no projeto e hoje já um dos melhores atletas sub-20 do Brasil. Ou com o Victor "Mini Bolt" que não ganhou o apelido apenas pelo sorriso fácil, mas pela velocidade impressionante.
Acompanhar um belíssimo projeto social, ouvir os relatos do seu criador, ver de perto o brilho nos olhos da molecada beneficiada já é uma injeção de esperança nesses tempos tão duros. Mas, depois de tanta conversa boa, talvez o melhor registro da manhã em Itaquera tenha sido solitário. Caminhar pela "pista olímpica" da rua Nicolino Mastrocola é perceber um Brasil que não se curva. Mesmo com a negação de equipamentos esportivos e de lazer, a periferia dá um jeito e encontra as frestas para seguir em frente. Numa manhã cinzenta e silenciosa é possível escutar o som de rápidas passadas no asfalto e a explosão do grande público na chegada. Basta querer.
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